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segunda-feira, 30 de março de 2015

A FILOSOFIA NO COTIDIANO: O BRASIL E OS PROTESTOS DE MARÇO DE 2015


OPINIÃO POLÍTICA


Gerson N. L. Schulz

Filósofo



Muitos pensam que a Filosofia é apenas coisa de acadêmicos. Coisa de "liberais", de "políticos", de "esquerdistas" e até de "comunistas", apenas. Mas não! Por isso o objetivo deste artigo é mostrar como a Filosofia está presente no cotidiano, no dia-a-dia das pessoas desde a fila do ônibus quando alguém discute sobre os capítulos de sua novela preferida até a sua situação com a família ou a prestação da casa.

Assim a Filosofia é, ouso dizer, a arte da conversação. Da dialética, em termos mais filosóficos. Da discussão de ideias e, mais que isso, a busca da veracidade dos fundamentos de tais ideias (as que estão presentes em uma discussão). É por isso que se pode falar em Filosofia Política, Filosofia da Economia, Filosofia da Educação, Filosofia da Ciência, Filosofia da Matemática, Filosofia do Direito e etc.

Um exemplo do uso da Filosofia no cotidiano são as discussões sobre as paralisações do mês de março deste ano. Instalou-se uma "crise"! Pararam os caminhoneiros reivindicando melhores condições de trabalho, melhorias no preço do combustível e etc. No dia quinze de março houve também um protesto espalhado pelo país cujos cartazes e faixas reclamavam contra a corrupção generalizada nas esferas pública e privada. Alguns pediam a saída da presidente recém-eleita.

Mas as faixas eram díspares, confusas e o movimento não teve o resultado esperado. A "crise" continua e o governo eleito tem pela frente a difícil tarefa de fazer um ajuste fiscal e combater a corrupção em meio a acusações contra os partidos no poder, contra membros do governo e contra membros também da oposição! Por isso é que a crise continua... e continuará devido também às medidas impopulares que este "ajuste" acarretará.

Mas a tal "crise" – da forma que está sendo alardeada pela grande mídia brasileira, por seu turno –, me parece um exagero porque a corrupção é algo que faz parte do jogo das grandes empresas e de suas relações com os governos, não há nada de novo nisso! Mesmo na Grécia antiga, por exemplo, o grande administrador Péricles foi acusado – durante seu Governo em Atenas – de peculato, mas mesmo assim ele foi reeleito! A corrupção vem desde o mundo Antigo e os grandes meios de comunicação do Brasil – de forma positivista (porque qualquer telejornal apresenta os 'fatos' como ímpares, sem passado nem futuro) –, como se cada fato dependesse de si mesmo como a uma mônada e fosse atemporal. E a aparente "desconexão" entre as notícias publicadas permite uma interpretação isolada dos acontecimentos que é a forma como a maioria das pessoas vê o que a grande mídia constrói para explorar, visando também o lucro.


É claro que ninguém duvida que a corrupção seja algo nocivo para o coletivo e que deva ser combatida, mas da forma como é construído o discurso na mídia em geral a coisa toda se transforma em algo "espetacular" e esse "combate à corrupção" mais parece uma panaceia. E, como tal, impossível; panaceia que, na prática, tem o efeito de acalmar os ânimos em geral, por algum tempo... o que é outro jogo falacioso porque ao acalmar ânimos, dispersa-se qualquer descontentamento.

A crise existe, claro, mas é de fundo econômico que reflete na política (esfera das decisões humanas que fazem a economia) no círculo do poder. O governo Dilma deu muito "azar"! Primeiro certo despreparo em relação aos efeitos das crises externas; depois a crise hídrica nas hidroelétricas que anulou a "benesse" da diminuição da conta de energia elétrica. Além disso, a corrupção na Petrobrás (que não iniciou neste governo, mas é, ao que se conhece, uma 'tradição' de vários governos) e seus reflexos diretos sobre a figura da presidente. Também o governo Dilma paga agora a conta das "benesses" e malabarismos fiscais do governo de Luis Inácio Lula da Silva, como a redução do IPI e outros. Medidas que agradaram às classes populares porque lhes permitiu comprar mais, mas que agora retrai a economia por causa do "calote" de muitos compradores que não podem pagar suas dívidas.

Por outro lado, as classes sociais mais abastadas (pelo que se viu nas faixas e cartazes de quinze de março) também reclamam das políticas públicas do Governo do Partido dos Trabalhadores, especialmente o "Bolsa Família". Muitos que criticam estas políticas públicas pensam até que elas são de cunho "marxista" ou socialista ou até comunista, mas não são. Uma leitura filosófica pode nos elucidar que elas são de cunho bem liberal e se enquadram dentro de um sistema filosófico que se conhece pelo nome de Positivismo. Mas o que é Positivismo? O que tem que ver com o cotidiano?

Todos os brasileiros já se depararam com a frase mais marcante de tal filosofia: "Ordem e Progresso". Esse é o lema do Positivismo, doutrina fruto do século XIX e que os militares que proclamaram a república em 1889 abraçaram com ardor e como sinônimo de avanço. Os autores do modelo definitivo de nossa bandeira apenas subtraíram a palavra "amor". Eis o lema completo: "o amor por princípio, a ordem por meio e o progresso por fim". Há uma condição sine qua non aqui. Caso não haja ordem não haverá progresso! Mas pergunte-se: que ordem? De quem? Pergunte-se também: progresso para quem? Para quê? Que tipo de progresso?


Augusto Comte
O Positivismo criado pelo filósofo francês Augusto Comte (1798-1857), crê ilimitadamente no poder da ciência e afirma que todo conhecimento que não utiliza o método científico para chegar à verdade, é crendice. Assim, não merecem título de conhecimento os saberes populares ("chazinhos" medicinais, lendas) nem o conhecimento religioso que não deve ser chamado de conhecimento, visto que não parte da razão, mas da fé.

Estruturalmente o positivismo compara a sociedade a um organismo vivo. Isto é, como no corpo humano os órgãos têm uma função específica e – do bom funcionamento de todos depende a harmonia do sistema –, da mesma forma na sociedade a ordem em todos os setores mantém a coesão da mesma. Assim é possível comparar o distúrbio estomacal de alguém que bebeu demais a um setor da sociedade que está em greve, por exemplo. Tal qual o mau funcionamento dos órgãos no corpo humano causa um tremendo mal-estar geral, a greve dos transportes coletivos, dos lixeiros, dos hospitais causa mal-estar social. O "remédio", nesse caso, é um governo forte. Caso o "órgão social" não melhore, resta ser tratado ou até extirpado.

Socialmente, o Estado Positivista acentua a diferenciação entre os estamentos (grupos). Acredita-se assim que há, necessariamente, um grupo de pessoas que "nasce" para mandar (exercer o poder) e outro que "nasce" para obedecer, e esse é formado pela maioria do povo que, não sendo "capaz" – como seus líderes ou patrões –, nem "inteligentes", não deve discutir as decisões destes. Consequência direta disso é a submissão, a riqueza nas mãos de poucos e a pobreza nas mãos de muitos. – Lula só se elegeu quando fez acordos com o Partido Liberal e com empresários. Associou-se assim o projeto político do PT (diferente daquele de sua fundação) com os interesses das classes dirigentes do país, os grandes empresários e setores empresariais. Atitude também positivista uma vez que para ganhar confiança não só das classes que se dizia representar (os trabalhadores), também queria a simpatia das outras classes para estabelecer um governo da "harmonia"!



No Positivismo em geral é preciso que se formem grupos sociais estanques como militares, cientistas, políticos, catadores de lixo, professores e outros. Como se entende que cada grupo é importante para a sociedade assim como os órgãos para o corpo, cria-se uma moral que diz, grosso modo, que: "o estômago nunca chegará a cérebro". Sendo assim dificulta-se a mobilidade social, uma vez que os positivistas entendem que todos os grupos sociais são necessários. É claro que o trabalho dos lixeiros é importantíssimo, mas alardear que seus filhos devem ser sempre lixeiros, que não devem estudar e daí que o governo não tem obrigação de construir escolas para atendê-los é algo não só antidemocrático como imoral e esse era o pensamento de muitos positivistas no século XIX e ainda é no século XXI no Brasil.

Um caso para análise, o Programa "Bolsa Família", por exemplo. Este permite a uma pessoa pobre sair da pobreza? Não! Talvez, como alardeiam os defensores desta política pública, tenha diminuído a miséria de várias famílias brasileiras, mas não as fará sair da pobreza. Ao se tomar a filosofia positivista para analisar este programa, percebe-se que ele se enquadra nesta filosofia porque permite (ainda que longe do desejado pela economia) fazer girar a "roda do consumo". Quando alguém recebe este dinheiro e o utiliza para comprar mercadorias, faz girar a roda do sistema econômico capitalista. Essas compras trazem aumento da produção industrial, comercial, arrecadação de impostos para o governo e (conforme a ideia original) lucro para os capitalistas alojados e em conluio com o modelo de Estado burguês e conservador que é o Brasil atualmente. Nada tem de socialista e muito menos de comunista este programa. Na prática ele é positivista! O mesmo ocorre com programas estudantis. Eles (contrariamente ao pensamento de imobilidade social original do Positivismo, mas não sem escapar totalmente deste projeto) permitem que pessoas sem formação cheguem à universidade e se formem, mas isso também tem seu mérito capitalista, pois alguém que seja um engenheiro, médico, professor é importante na medida em que seja capaz de desempenhar um papel social e proporcionar o "progresso" dentro da sociedade. Além disso, é daí que sai a filosofia da meritocracia moderna. Ela é um tipo de filosofia que exalta a hierarquia e a legitima e, com isso, embasa todo o sistema burocrático dos governos contemporâneos. O que seria do exército se não houvesse a hierarquia? Como se manteria o poder dos superiores militares? O que seria do poder governamental sem a obediência civil?

Diminuto grupo de pessoas pede "intervenção militar"
no Brasil.
Local: Cidade de Pelotas - RS
Créditos da foto: Professor Eliézer Oliveira.
Outro caso para análise são as formas de protesto que se tem visto no mês de março de 2015. Estranhamente também são positivistas! É o caso do movimento dos caminhoneiros que, ao paralisar as rodovias, podem ser comparados dentro do positivismo a um "órgão que está com problemas" dentro do corpo humano, vamos compará-los ao fígado. Caso o fígado diminua as suas funções, todo o organismo sofre. Surge a esteatose, por exemplo. Depois as toxinas vão se acumulando por toda parte. O que faz o cérebro? Ele ordena que certas enzimas limpem tudo o que está causando mal. E foi isso que o governo federal fez ao atender algumas reivindicações dos caminhoneiros (embora não tenha acatado todas) para que o órgão com "defeito" dentro da estrutura social voltasse a funcionar harmonicamente. Com as estradas liberadas, tudo voltou à "normalidade", inclusive os ânimos de boa parte daqueles que protestavam. Tanto é assim que no dia quinze de março de 2015 não se viu qualquer estrada bloqueada, pois os interesses dos caminhoneiros já haviam sido atendidos, embora muitas das faixas que se viam nos protestos destes profissionais também pedissem a saída da presidente. Fica clara uma fragmentação entre os estamentos dos caminhoneiros e do restante da população, criou-se, devido a esta fragmentação, uma espécie de discurso da "raiva" pelas pessoas em geral em relação ao movimento dos transportadores de cargas!

Dentro de uma "filosofia marxista" ou de alguma forma de organização com base nas ideias socialistas, as coisas não se dariam assim. Todos os "estamentos" sociais se uniriam para formar uma "consciência de classe". Caminhoneiros se uniriam aos professores (de forma sólida e contínua e não acidental como houve no estado do Paraná) que também protestam, que se uniriam aos trabalhadores da segurança pública que também protestam, e estes se uniriam a outros trabalhadores em geral. Mas o que acontece não é isso, o que acontece é exatamente o que menciona o Positivismo, a desunião de classes e a formação de estamentos, grupos com interesses isolados. Permanece, assim, a visão individualista – travestida nos protestos – de visão coletivista. Aqueles que protestam (da forma como protestam) não chegam jamais a aprofundar a busca pela verdade e pela origem dos problemas sociais (papel que os filósofos sempre atribuíram à Filosofia desde o mundo Antigo). As pessoas que saem às ruas com faixas e cartazes ficam no superficial, no senso-comum. Não filosofam, não discutem ou debatem as ideias. São uma massa amorfa porque não tem "consciência" do que querem realmente! Qual é a causa que advogam, afinal? Combater a corrupção! Sim, mas importa dizer como, e isso elas não sabem! – Longe estamos do maio de 1968!

Outra ironia dos protestos (embora sejam casos isolados) são os pedidos pela volta do regime Militar. É uma contradição performativa isso, pois é pedir para acabar com o regime (democrático) que lhes permite protestar livremente já que uma ditadura é um estado de exceção! Daí decorre outra contradição, a ideia de que se deve "fechar" o Congresso defendendo que este é a fonte da corrupção! Esse comportamento é bastante positivista e, como tal, superficial, pois equivaleria a enviar enzimas e anticorpos contra o órgão com problemas e não contra o que está acarretando o mal-estar no corpo. O correto, em se tratando do fígado de nosso exemplo, seria mudar a alimentação! (No caso do Congresso, mudar os políticos!)


Por fim, este texto, como todo texto, é um ponto de vista, um discurso, porém por onde ando nas ruas ou nas salas de aula ouço um ou outro afirmar que se deve "fechar" o Congresso, "que era melhor na época da ditadura militar" sem perceber que a causa de muitos de nossos problemas é de fundo econômico, da falta de um projeto social mais amplo e até cultural e, por isso, não tenha dúvidas ao ouvir tais palavras: "eis mais um positivista, provavelmente, sem o saber...!"

HERMENÊUTICA DA MORTE



Gerson N. Lemos Schulz
Filósofo



O cenário de um velório me gerou esta reflexão sobre a morte. Ali, observando os túmulos (alguns abandonados outros imponentes) no cemitério, imóveis, cercados por flores murchas, secas, mortas... o choro, a tristeza da perda, o cheiro fúnebre das velas me penetrando as narinas... pensei no lugar que a morte ocupa no cotidiano e o espaço que damos a ela. Muitos a temem, mas ninguém pode afirmar absolutamente o que ela é. Para a ciência trata-se do fim das atividades de um organismo vivo. O fim das atividades cerebrais, já que o cérebro é responsável pelo comando das ações do organismo.

Mas ao contrário do que se pensa, não vejo a morte como experiência teológica. A vejo como experiência estética. Empiricamente, ninguém provou ainda que o homem possua uma alma imortal que sobreviva, e ainda mantendo sua identidade (pensamentos, lembranças, etc.). Muito menos determinou que haja um "lugar" para esta alma após a morte. Isso é, ainda, teologia. A estética é a parte da Filosofia que estuda os conceitos de beleza, belo, puro e seus contrários e se fundamenta num sentimento resultante de um conjunto de sensações internas ou orgânicas caracterizadas pelo bem ou mal-estar, tratando-se de um fundamento cenestésico. Você pode perguntar-me: "mas o que tem de belo no ato de morrer?" Respondo: depende do ponto de vista. E, ademais, não pode haver a "estética do feio"? Quando alguém afirma que algo é "feio" é porque tem algum juízo estético, o que nos permite pensar que o feio é também estético, porém, apenas, não se encaixa nos parâmetros estéticos de quem classifica algo como feio. E quanto ao "depende do ponto de vista" em considerar-se a morte passível de alguma beleza, é possível dizer que ela é bela no sentido do uso que a ela é possível dar. Por exemplo, o herói que morre para salvar outrem, sua morte (em si é 'feia'), mas no uso é "bela" quando alguém diz que o ato foi de um altruísta, heroico, exemplar! Assim, em termos filosóficos, me parece que a morte é uma experiência do corpo tal como a dor ou o prazer; e é a última, por sinal. De fato, morte é dor e é aí que ela se torna também estética.


Quando alguém morre num acidente automobilístico, nos milésimos de segundo finais de consciência, a dor do impacto se faz presente e é possível sentir a morte. O excesso de dor faz nosso cérebro "desligar" momentaneamente caso outros órgãos viscerais não tenham sido atingidos, ou para sempre, caso o corpo tenha sido irremediavelmente destruído. É o fim do eu.

Buda afirmou que tudo é dor. Mas talvez nem tudo. A vida também é prazer, e dor e prazer se relacionam com beleza e feiura, portanto: estética. E não é por acaso que castigo infrinja dor (é caminho para a morte), e recompensa incentive prazer, lembre uma "vida boa", uma vida bela. Igualmente, não se deve confundir prazer sempre com sexo. Ler, escrever, falar, comer, trabalhar, pensar e até rezar podem ser prazer para uns e outros.


Os conteúdos da vida são experiências estéticas: nascer, aprender, sentir dor ou alegria, saudade, raiva, tristeza, chorar, morrer. Nessa perspectiva, a morte não é passagem, qualquer ponte para outro lugar, nenhuma entrada para outro mundo. Ela faz parte da vida, é um ato concreto e também a última experiência do corpo.


Enfim, a morte é apenas a completude de um caminho iniciado na fecundação, sendo o fim de uma linha e não de um círculo em que se chega ao mesmo lugar de partida. A morte também é a experiência mais cruel, mais aterradora. Aquela que causa a dor permanente pela perda de alguém que jamais voltará. Quem fica é obrigado a viver "a" e "na" ausência do outro, além de ver prenunciado seu próprio fim. 

De outro ponto de vista, essa ideia pode levar à reflexão (a uma pedagogia da morte). Ajudar a pensar sobre o sentido do 'que se está fazendo', do 'que se vive' e transtornar a ótica da vida tal qual a cultura nos ensina, a dar uma segunda chance aos outros e a si mesmo sem que seja por causa do medo com que as religiões ameaçam àqueles que não perdoam. E por que não - quem sabe - fazer nascer uma nova ética. A ética daqueles que sabem viver e conviver sob a perspectiva da morte, nosso maior tabu.